O deuteron

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Notas de aula são propriedade intelectual. Sendo assim, qualquer uso, no todo ou em parte, deve ter a origem referenciada apropriadamente, após autorização de seu autor.

O texto a seguir corresponde à anotações parciais de aula. Não é um texto em forma final, completo e totalmente revisado. Nesse caso, esse texto não tem como objetivo substituir livros sobre o assunto. Assim, esse texto deve ser entendido apenas como um guia de estudo para o aluno acompanhar a disciplina.


Vamos estudar em detalhes o dêuteron. A partir da construção de um modelo simples para a interação entre próton e nêutron, comparando os resultados desse modelo com medidas experimentais de elevada precisão, tentaremos inferir propriedades sobre as forças nucleares fortes que tornam o núcleo estável.

Vamos inicialmente listar algumas informações experimentais sobre o dêuteron. Como elas são determinadas em detalhes não vêm ao caso nesse momento:
  • Energia de ligação do dêuteron: medidas indicam que só há um estado ligado do dêuteron com energia de ligação E_B = 2.22464 \pm 0.00005 MeV. Alguns métodos de medidas foram discutidos anteriormente.
  • Raio o dêuteron: medidas de espalhamento de elétrons indicam que o raio do dêuteron é aproximadamente 2.1 fm.
  • Momento angular e paridade: medidas através de métodos ópticos e micro-ondas indicam que o momento angular total do dêuteron é J=1. Através de medidas de desintegrações nucleares, através da conservação da paridade e comparação com modelos teóricos, mostram que o dêuteron deve possuir função de onda par.
  • Momento de quadrupolo elétrico: Medidas realizadas na década de 1930 mostraram que o dêuteron é um núcleo prolato ao longo do seu eixo de spin, com momento de quadrupolo elétrico Q = 0.00282 barns.
  • Momento de dipolo magnético: O momento de dipolo magnético do dêuteron pode ser obtido através de métodos de ressonância magnética, na qual pode-se ajustar um campo magnético oscilante de frequência igual à frequência de Lamour para o dêuteron. A frequência de Lamour está relacionada diretamente ao momento de dipolo magnético que, nesse caso, vale \mu_d = (0.857393 \pm 0.000001)\mu_N, onde \mu_N é o magneton nuclear.
Com base nessas informações vamos tentar construir um modelo realista, porém simples, para o dêuteron.

Primeiramente vamos olhar o momento de dipolo magnético. A soma do momento de dipolo do próton e nêutron vale \mu_p + \mu_n = 0.8797 \mu_N, muito próximo ao valor para o dêuteron. Essa soma simples sugere que os spins do próton e nêutron devam, em primeira aproximação, estar alinhados e que o momento angular orbital entre eles seja muito pequeno, \ell \sim 0. Contudo, a elevada precisão das medidas experimentais tornam essa soma incompatível com o valor medido. Vamos retomar isso mais a frente. Contudo, vamos usar que essa relação é aproximadamente satisfeita como ponto de partida.

Vamos resolver a Equação de Schrödinger no centro de massa do sistema próton-nêutron. Sendo \mu a massa reduzida desse sistema, temos:

\left(-\frac{\hbar^2}{2\mu} \nabla^2 + V(r)\right)\psi = E\psi            (1)

Supondo que o potencial é central, podemos escrever a função de onda como sendo o produto de uma função radial por uma função que depende dos ângulos polar e azimutal, ou seja:

\psi(r,\theta, \phi) = \frac{u_{\ell}(r)}{r}Y_{\ell m}(\theta,\phi)            (2)

Nessa separação de variáveis, conserva-se o momento angular orbital relativo entre as partículas. A parte angular possui solução trivial (harmônicos esféricos) enquanto a parte radial contém toda informação acerca do potencial. Nesse caso, para entender a interação entre as partículas, precisamos resolver a equação radial:

\frac{d^2}{dr^2}u_{\ell} + \frac{2\mu}{\hbar^2}\left( E - V(r) - \frac{\hbar^{2}\ell(\ell+1)}{2\mu r^2}\right) u_{\ell} = 0            (3)

O potencial mais simples que podemos utilizar para o dêuteron é um poço quadrado radial, ou seja:

V(r)  = \left\{ \begin{array}{l l} \infty & \quad \mbox{se $r=0$}\\ -V_0 & \quad \mbox{se $r<R$}\\ 0 & \quad \mbox{se $r>R$}\\ \end{array} \right.            (4)

O fato dele do potencial ser infinito a curtas distâncias representa a saturação da densidade nuclear, como visto no início da disciplina. A proximidade do momento de dipolo magnético do dêuteron com a soma dos momentos do próton e nêutron, como vimos, sugere que o momento angular relativo seja nulo. Assim, fazendo \ell = 0 em (3) temos a seguinte equação:

\frac{d^2}{dr^2}u + \frac{2\mu}{\hbar^2}\left( E - V(r)\right) u = 0            (5)

Vamos resolver esse sistema para o estado fundamental do dêuteron, ou seja, E = -E_B. Definindo k^2(r) = \frac{2\mu}{\hbar^2}\left( -E_B - V(r)\right), podemos escrever a equação (5) como:

\frac{d^2}{dr^2}u + k^2(r) u = 0            (6)

A equação (6) pode ser separada em duas, dependendo da região do potencial: ou seja, para r<R (região I):

\frac{d^2}{dr^2}u + k^2_I u = 0            (7)

e, para r>R (região II):

\frac{d^2}{dr^2}u - k^2_{II} u = 0            (8)

com k^2_I = \frac{2\mu}{\hbar^2}\left( V_0 - E_B \right) e k^2_{II} = \frac{2\mu}{\hbar^2}E_B. As soluções de (7) e (8), considerando que u(0)=0 são, respectivamente:

\begin{array}{l} u_I(r) = A \sin{(k_Ir)} \\ \\ u_{II}(r) = B\exp{(-k_{II}r)} \\ \end{array}            (9)

Aplicando as condições de contorno em r=R para a continuidade da função de onda e sua derivada, temos:

\begin{array}{l} Ak_I\cos(k_IR) = -Bk_{II}\exp(-k_{II}R) \\ \\ A\sin(k_IR) = B\exp(-k_{II}R) \\ \end{array}            (10)

Dividindo as duas equações temos:

k_I \cot(k_IR) = -k_{II}            (11)

Resolvendo numericamente ou graficamente (11), usando os dados experimentais para E_B e R, obtemos que o valor da profundidade do poço de potencial é V_0 \sim 34 MeV. Pode-se mostrar (exercício) que não existe outro estado ligado para o dêuteron com momento angular nulo. Nesse caso, pode-se inferir que em outros momentos angulares a situação torna-se pior por conta do potencial centrífugo que surge quando o momento angular não é nulo.

Nós já vimos, contudo, que o estado {}^{3}S_1 sozinho (ver início das notas) não consegue explicar o momento de dipolo magnético do dêuteron, apesar de fornecer um valor próximo. Pode-se argumentar que g_s seja diferente para o estado ligado desses nucleons mas esse estado também não consegue explicar o modelo de quadrupolo elétrico experimental do dêuteron. Assim, vamos tentar construir uma função de onda para o dêuteron através de uma mistura de estados de momento angular, impondo a restrição que o momento angular total observado para esse estado ligado é J=1. As possíveis combinações de momento angular e spin para J=1 são:

\begin{array}{l l}  {}^{3}S_1 & \ell = 0, S = 1 \\ {}^{3}D_1 & \ell = 2, S =1 \\ {}^{1}P_1 & \ell = 1, S =0 \\ {}^{3}P_1 & \ell = 1, S =1 \\ \end{array}             (12)

Pelo fato do dêuteron possuir paridade definida, podemos misturar apenas estados de mesma paridade. Assim, as possíveis combinações são {}^{3}S_1 e {}^{3}D_1 (estados pares) ou {}^{1}P_1 e {}^{3}P_1 (paridade ímpar). Sabemos que o estado S pode explicar grande parte do momento de dipolo magnético. Assim, vamos explorar apenas a primeira combinação possível.

O problema consiste em achar a função de onda para essa combinação de estados. Nós sabemos as funções de onda para estados bem definidos |\ell\, m_{\ell}\, s\, m_s\, \rangle, que são harmônicos esféricos ou matrizes de Pauli para estados de spin 1/2. Contudo, sabemos que o estado do dêuteron é definido pela função de onda |\ell\, s\, J\, m_J\rangle. Assim, devemos escrever essa última como combinação de estados das outras. Além disso devemos considerar que o estado de spin do dêuteron consiste na soma do spin de dois nucleons. Para a combinação de estado S e D, temos que o spin total é sempre 1. Nesse caso, antes de encontrar a função de onda total com J=1 vamos encontrar apenas a parte de spin. Nesse caso, queremos encontrar o estado de spin |s_p\, s_n\, S\, m_S\rangle = |\tfrac{1}{2}\, \tfrac{1}{2}\, 1 m_S\rangle. Para S=1, podemos ter três funções de onda distintas que correspondem a m_S=-1,0,1. Em linhas gerais, usando o formalismo de somas de momento angular, podemos escrever que um estado de soma de spins é a soma de todos os estados possíveis de spins individuais, ponderados pelos coeficientes de Clebsh-Gordam correspondentes, ou seja:

| s_p\, s_n\, S\, m_S\rangle = \sum_{m_s^p,m_s^n}{C^{S\, m_S}_{s_p\, m_s^p\, s_n\, m_s^n} |s_p\, m_s^p\rangle |s_n\, m_s^n\rangle             (13)

Para o estado | \tfrac{1}{2}\, \tfrac{1}{2}\, 1\, 1\rangle só há uma combinação de soma possível, nesse caso:

| \tfrac{1}{2}\, \tfrac{1}{2}\, 1\, 1 \rangle = |p\, \tfrac{1}{2}\,\tfrac{1}{2}\,\rangle |n\, \tfrac{1}{2}\,\tfrac{1}{2}\,\rangle = u_p u_n             (14)

Similarmente para o estado | \tfrac{1}{2}\, \tfrac{1}{2}\, 1\, -1\rangle:

| \tfrac{1}{2}\, \tfrac{1}{2}\, 1\, -1 \rangle = |p\, \tfrac{1}{2}\,{\tiny -}\tfrac{1}{2}\,\rangle |n\, \tfrac{1}{2}\,\tiny{-}\tfrac{1}{2}\,\rangle = d_p d_n             (15)

No qual definimos uma notação mais simples u = |\tfrac{1}{2}\, \tfrac{1}{2}\rangle e d = |\tfrac{1}{2}\, -\tfrac{1}{2}\rangle, em analogia ao spin up e spin down. No caso do estado | \tfrac{1}{2}\, \tfrac{1}{2}\, 1\, 0\rangle, há duas possibilidades de combinação de spins. Nesse caso, consultanto tabelas de coeficientes de acoplamento de momento angular, podemos escrever que:

| \tfrac{1}{2}\, \tfrac{1}{2}\, 1\, 0 \rangle = \frac{1}{\sqrt{2}}(u_p d_n + d_p u_n)             (16)

As equações (14), (15) e (16) representam as três combinações possíveis de estados tripletos de spin (S=1 \rightarrow 2S+1=3). O momento angular total pode ser obtido, para os estados {}^{3}S_1 e {}^{3}D_1, acoplando os estados de momento angular orbital com as funções de onda de spin total.

Para o estado {}^{3}S_1 a situação é bem simples. Como o momento de dipolo magnético é calculado na situação m_J=J, e como a onda com \ell=0 não é degenerada, há apenas uma combinação possível. Assim:

| {}^{3}S_1 \rangle = Y_{0\,0} u_p u_n             (17)

Para o estado {}^{3}D_1, os únicos termos que contribuem para m_J=1 compõem o seguinte estado:

| {}^{3}D_1 \rangle = \sqrt{\frac{3}{5}}Y_{2\,2} d_p d_n -\sqrt{\frac{3}{10}}Y_{2\,1}\frac{1}{\sqrt{2}}(u_p d_n + d_p u_n) +\sqrt{\frac{1}{10}}Y_{2\,0} u_p u_n             (18)



Como visto anteriormente, o operador de momento de dipolo magnético pode ser escrito como um termo orbital, que atua somente sobre o próton e um termo de spin, atuando sobre próton e nêutron. Assim,

\mu_z = (g_{\ell}\ell_z^p + g_s^p S_z^p + g_s^n S_z^n)\mu_N             (19)

Como o momento angular do próton é metade do momento angular relativo no centro de massa, temos:

\mu_z = (\frac{1}{2}g_{\ell}\ell_z + g_s^p S_z^p + g_s^n S_z^n)\mu_N             (20)

A contribuição de momento de dipolo para o estado {}^{3}S_1 vale:

\langle {}^{3}S_1 | (\frac{1}{2}g_{\ell}\ell_z + g_s^p S_z^p + g_s^n S_z^n)\mu_N | {}^{3}S_1 \rangle = \frac{1}{2} (g_s^p + g_s^n)\mu_N = 0.88\mu_N            (21)

O mesmo pode ser feito para o estado {}^{3}D_1, obtendo-se o resultado 0.31\mu_N (exercício). O momento de dipolo magnético experimental do dêuteron é \sim 0.857\mu_N, intermediário entre os valores desses dois estados pares. Assim, podemos admitir que a função de onda do dêuteron é uma combinação desses dois estados, ou seja:

|d\rangle = C_{{}^3S_1}|{}^3S_1\rangle + C_{{}^3D_1}|{}^3D_1\rangle            (22)

onde:

\langle d| \mu_z |d\rangle = C^2_{{}^3S_1}0.88\mu_N + C^2_{{}^3D_1}0.31\mu_N = 0.857\mu_N            (23)

Considerando que a função de onda do dêuteron deve ser normalizada, ou seja \langle d|d \rangle = 1, chega-se ao resultado C^2_{{}^3S_1} = 0.96 e C^2_{{}^3D_1} = 0.04.

Resultado similar pode ser obtido considerando o momento de quadrupolo elétrico (exercício). Contudo, o importante desse trabalho é concluir que o dêuteron é formado da combinação de dois estados de momento angular orbital diferentes, apesar da contribuição de \ell=2 ser bastante pequena. Isso terá consequências importantes no entendimento das forças nucleares. O dêuteron não é um estado de momento angular orbital único. Assim, momento angular orbital não é uma constante de movimento. Veremos o efeito disso a seguir.

Exercícios

  1. Mostre que, no caso do dêuteron, considerando o potencial de interação com profundidade de 34 MeV e raio igual ao raio do dêuteron, há somente um estado ligado.
  2. Mostre que uma combinação de estados {}^3P_1 e {}^1P_1 não é capaz de explicar o momento de dipolo magnético do dêuteron.
  3. Mostre que \langle {}^{3}D_1|\mu_z|{}^{3}D_1\rangle = 0.31\mu_N. Dica: Obtenha a função de onda de spin para o estado | \tfrac{1}{2}\, \tfrac{1}{2}\, 0\, 0\rangle. Esse estado aparece quando se calcula esse valor esperado.
  4. Obtenha a fração de mistura de estados {}^{3}S_1 e {}^{3}D_1 a partir do cálculo de momento de quadrupolo elétrico. Compare com o resultado obtido nessa aula.

Leitura recomendada

  1. Introductory Nuclear Physics, K. S. Krane, capítulo 4.1.
  2. Introdução à Física Nuclear, H. Schechter e C. A. Bertulani, capítulos 2.1-2.4.
Alexandre Tuesday 16 March 2010 at 9:25 pm | | FisicaNuclear

three comments

Caio Laganá

Uma pequena correção: nas equações (14), (15), (16), (17) e (18), acho que o estado de spin up e down do neutron deveria ser escrito u_{n}, ao invés de u_{d} (índice “n” no lugar do índice “d”, que pode confundir com o próprio deuteron).

Caio Laganá, (Email ) (URL) - 24-04-’10 12:21
Caio Laganá

Oi Suaide, estou com uma dúvida: a equação (9) da função de onda do deuteron no poço finito é um seno, devido à escolha da condição de contorno u(0)=0 na equação (7). Entretanto, o seno é uma função ímpar, e a paridade do neutron é positiva. Como a parte de spin é simétrica (up,up) e o momento angular é zero, a função espacial não deveria ser um cosseno (que é par)? Acho que isso não mudaria a profundidade do poço na solução da equação (11), mas a forma da função de onda seria bastante diferente, pois em r=0 haveria um máximo, não um mínimo!

Caio Laganá, (Email ) (URL) - 24-04-’10 13:40
Alexandre

Olá Caio

Corrigi as equações. Foi uma distração em uma delas e uma sequência de copy/paste que propagou o erro.

Sobre o seu segundo comentário, a questão da função ímpar. Lembre-se que o seno é só o termo radial e não a função de onda completa. Veja a equação (12) na aula sobre paridade em http://sampa.if.usp.br/~suaide/blog/?e=1..

O operador paridade troca o vetor r por menos r. VETOR! Isso resulta na manutenção do módulo ®, e a parte radial não muda o sinal. Nesse caso a paridade vem da parte angular. Como o momento angular orbital é par (l=0) a função de onda é par.

Alexandre, - 29-04-’10 14:22
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