Decaimento β
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O texto a seguir corresponde à anotações parciais de aula. Não é um texto em forma final, completo e totalmente revisado. Nesse caso, esse texto não tem como objetivo substituir livros sobre o assunto. Assim, esse texto deve ser entendido apenas como um guia de estudo para o aluno acompanhar a disciplina.
A emissão β consiste no principal mecanismo de decaimento de núcleos fora da linha de estabilidade. Isso por conta da pequena massa da partícula β, se comparada às massas nucleares, tornando os limiares de emissão menores que aqueles para emissão de partículas mais pesadas. No decaimento β um próton se converte em nêutron, emitindo um pósitron (β+). O processo inverso pode ocorrer, um nêutron decaindo em próton, emitindo um elétron (β-). Há ainda a captura eletrônica, na qual um elétron é capturado pelo núcleo, convertendo um próton em nêutron. Assim, os processos básicos nucleares envolvidos nesses três decaimentos são:



Apesar dos decaimentos acima estarem corretos, com a presença do neutrino, o entendimento dessas reações não era completo no início dos estudos de decaimentos nucleares. Não se sabia da existência do neutrino e, mesmo após ser postulado, foi necessário décadas para medí-lo. As evidências experimentais obtidas do decaimento β eram tão intrigantes que o completo entendimento do mesmo levou muito tempo para ocorrer, ao contrário do decaimento α, que consiste de um problema simples de tunelamento quântico.
A primeira evidência intrigante no decaimento β surgiu da medida do espectro de energia para os elétrons emitidos. Em um decaimento genérico de dois corpos


Devemos impor a conservação de momento linear. A conservação do momento em decaimentos de dois corpos, aliado à (4), faz com que as energias cinéticas das partículas filhas sejam bem definidas. Ademais, no decaimento β a massa do elétron é muito menor que a massa do núcleo resultante de decaimento. Nesse caso, toda energia liberada pelo decaimento deveria ser convertida em energia cinética do elétron, igual ao valor-Q da reação, como observa-se, por exemplo, para o decaimento α, em primeira aproximação. Não foi isso o observado. Na figura 1 mostramos o espectro de elétrons (e pósitrons) medidos para o decaimento β do núcleo de 64Cu. A diferença entre os dados para elétrons e pósitrons vem, em uma visão mais ingênua, do fato de elétrons serem freados após o decaimento devido à interação atrativa com o núcleo resultante enquanto pósitrons são repelidos, pelo mesmo motivo. A energia cinética das partículas β emitidas apresenta uma larga distribuição, incompatível com o previsto para um decaimento de dois corpos. Esse foi um grande problema para a física nuclear no início do século XX. Para solucionar esse problema, havia apenas três alternativas:
- Propor que a lei de conservação de energia funciona apenas na média. Essa idéia foi proposta por Niels Bohr.
- Abandona-se a lei de conservação de energia. Isso seria realmente uma quebra gigantesca de paradigma na física e teria sérias consequências para o entendimento da Natureza. Contudo, como se vivia um período bastante conturbado na física, com o início da Mecância Quântica e observação de um mundo microscópico totalmente não intuitivo, essa opção foi considerada por muitos cientistas.
- Propõe-se algo novo, inusitado, que reconcilia as observações com os paradigmas vigentes.

Em 1930, Wolfgang Pauli, em carta submetida a cientistas em uma conferência (figura 2), sugere a existência de uma terceira partícula nesse decaimento. Naquele momento, Pauli chamou essa partícula de nêutron. A descoberta do nêutron por Chadwick, em 1932, com características diferentes das propostas por Pauli, renomeou essa partícula para neutrino. Em tradução (Phillippe Gouffon), temos: "Prezados senhoras e senhores radioativos. Rogo-lhes escutar com muita boa vontade o portador desta carta. Ele lhes dirá em detalhes que, para sanar a má estatística dos núcleos do N e Li6 e o espectro beta contínuo, descobri um remédio desesperado para salvar as leis de conservação da energia e as estatísticas. Trata-se da possibilidade da existência nos núcleos de partículas neutras de spin 1/2, obedecendo ao principio de exclusão, mas diferentes dos fótons pois elas não se movem à velocidade da luz, e que chamo de nêutrons. A massa dos nêutrons deve ser da mesma ordem de grandeza da dos elétrons e não deve em hipótese nenhuma exceder 0,01 da massa do próton. O espectro beta seria então compreensível se supusermos que durante a desintegração beta, com cada elétron emitido um nêutron seja emitido, de modo que a soma das energias do nêutron e do elétron seja constante."

Entre a previsão e descoberta passaram-se mais de 30 anos. Neutrinos foram descobertos apenas em 1953, por Reines e Cowan, que ganharam Prêmio Nobel, mais de 40 anos depois, em 1995. Eles usaram como fonte de neutrinos um reator nuclear e como detector, cintilador líquido rico em prótons. De fato, eles observaram a reação inversa

A teoria de Fermi para decaimento β
Em 1934 Fermi propôs uma teoria para o decaimento β. Essa teoria não é completa. Por exemplo, naquela época não se sabia sobre violação de paridade nos decaimentos β, só descoberta décadas mais tarde. Contudo, podemos explicar vários aspectos do decaimento β, tais como constantes de decaimento e espectros de energia das partículas emitidas. Naquela época eram conhecidos os decaimentos α e γ do núcleo. O decaimento α consiste em um simples problema de tunelamento quântico e não é possível aplicá-lo nesse caso. As razões são simples: a partícula β e neutrino não existem dentro do núcleo. Essa teoria deve ser capaz de explicar suas formações. No caso do decaimento β- não há barreira para tunelamento. No caso β+ pode-se mostrar que, por conta da massa da partícula, a probabilidade de tunelamento é próxima da unidade. Assim, o modelo para decaimento α não é aplicável. Além disso, devemos levar em conta que as partículas β e neutrinos devem ser tratados relativisticamente. As baixas massas dessas partículas fazem com que, nas energias típicas envolvidas, suas velocidades sejam muito altas.Fermi supôs que a interação responsável pelo decaimento β seja fraca e de curta duração, se comparada às constantes de decaimento envolvidas. Nesse caso, pode-se usar como base para construção dessa teoria a regra de ouro de Fermi, já deduzida:

onde







A mudança de

A função de onda inicial é a função de onda do núcleo original. Já discutimos um pouco sobre isso. Podemos utilizar, por exemplo, o modelo de camadas para obter a função de onda do núcleo original. A função de onda final, por outro lado, envolve três partículas distintas: o núcleo final, a partícula β e o (anti)neutrino. Nesse caso, podemos escrever que a função de onda do estado final é:

onde








(8) e (9) podem ser expandidas em:


Levando em consideração o comprimento de onda típico dessas partículas vemos que em volumes típicos de dimensões nucleares, podemos assumir que a função de onda é constante e tomar apenas o primeiro termo das expansões acima. Por exemplo, um elétron de 1 MeV de energia possui comprimento de onda da ordem de 900 fm, muito maior que dimensões típicas nucleares. Se tomarmos, por exemplo, a expansão em ondas parciais de uma onda plana, vemos que esse primeiro termo corresponde ao termo de momento angular orbital



Vamos calcular, agora, a densidade de níveis no estado final. Para isso, vamos utilizar a densidade de estados de um gás de férmions. Utilizando da densidade de estados obtidos anteriormente, quando desenvolvemos o modelo de Fermi nuclear, temos, para partículas β e neutrinos, sabendo que



O número total de estados finais (


Desprezando o recuo do núcleo filho, a energia final é dada pela soma das energias da partícula β e neutrino. Supondo a massa do neutrino nula, podemos fazer que


o que resulta em:

A partir do valor-Q da reação, podemos escrever que:


que, substituindo em (16) obtém-se:

Vamos fazer um breve comentário sobre o elemento de matriz


onde, nesse caso:

é o elemento de matriz devido somente às funções de onda nucleares, já que a função de onda inicial é puramente nuclear. Voltaremos a esse assunto mais adiante. Nesse caso, podemos reescrever (18) como:

que não mais depende do volume utilizado para normalizar as funções de onda das partículas β e neutrino. De fato, esse cancelamento ocorre independente do termo adotado na expansão realizada em (10) e (11) e não precisaríamos do artifício de usar somente o termo de transição permitida.
Como o número de partículas β observadas em um intervalo entre




Na figura 3 vemos um cálculo do espectro de momento de elétrons, a partir de (22), para um decaimento no qual



Os espectros apresentados na figura 3 independem se o decaimento é β+ ou β-. Contudo, nos dados mostrados na figura 1 (para espectro de momentos) notamos uma clara diferença entre esses dois decaimentos para o cobre. Argumentamos que isso seria devido à interação da partícula β emitida e o núcleo. Essa interação seria atrativa para o caso da emissão β- e repulsiva para emissão β+. Do ponto de vista mais atual, levando em conta efeitos quânticos, não podemos tratar as funções de onda para as partículas β como sendo ondas planas, por conta da interação coulombiana com o núcleo, de longo alcance. Isso não ocorre no caso dos neutrinos. Esse efeito deve ser levando em consideração para a obtenção do espectro de emissão de elétrons. Esse efeito, de foma mais clara, pode ser visto na figura 4, onde mostramos os espectros em energia e momento para o decaimento β do cobre.

Em sua teoria de 1934, Fermi inclui essa correção devido a essa interação residual entre a partícula β e o núcleo filho, que distorce a função de onda dessa partícula. Podemos fazer isso incluindo um fator de correção em (22). Esse fator, conhecido como Função de Fermi, depende do número atômico do núcleo filho e do momento (ou energia) do elétron ou pósitron, normalmente representada por





A dedução de





com









Vamos voltar a nossa atenção agora sobre o elemento de matriz


sendo



A somatória em








O efeito prático desses operadores é de transformar um nêutron em próton ou vice-versa. Como discutimos anteriormente, o proton pode ser descrito como um estado




Na prática, a somatória em



Substituindo (25) em (23) chegamos, finalmente, à:

A constante de decaimento


Podemos definir a integral de Fermi,



As constantes em (33) deixam essa integral adimensional. Os valores da integral de Fermi são normalmente tabelados ou apresentados graficamente (ver figura 6).

Desse modo, a constante de decaimento é escrita como:

Note que no modelo construído acima, consideramos apenas o termo de transição permitida para as funções de onda da partícula β e neutrino, bem como consideramos o neutrino uma partícula sem massa. Nesse modelo, também, efeitos interessantes, como violação de paridade, não são contemplados. A seguir vamos discutir esses fenômenos, que tornaram a física envolvida no decaimento β tão intrigante ao longo do século XX. Antes disso, porém, vamos introduzir duas representações para os resultados obtidos anteriormente de modo a facilitar consideravelmente a análise dos dados de decaimento β.
Gráfico de Kurie
O modelo descrito anteriormente possui algumas suposições. Duas importantes suposições são a hipótese da massa nula do neutrino (que discutiremos na próxima aula) e a adoção apenas do termo de transição permitida nas funções de onda da partícula β e neutrino. Dessas suposições, deduzimos a expressão para a constante de decaimento

A partir dessa relação podemos construir um gráfico de




Desvios em relação a uma reta indicam a presença de fenômenos não considerados na teoria proposta. No caso da figura 8, por exemplo, os desvios em baixos momentos são atribuídos ao espalhamento das partículas β dentro da fonte radioativa, antes de atingirem o detector o que não seria, nesse caso específico, uma limitação da teoria proposta e sim uma limitação experimental. Contudo, pode-se observar também desvios significativos que indicariam fenômenos não considerados no desenvolvimento teórico. Por exemplo, na figura 8 mostramos um gráfico de Kurie que não apresenta nenhuma região linear. Esse gráfico corresponde ao decaimento β- do 91Y. Essa forma não linear é resultante da predominância de um decaimento proibido. No caso de decaimentos proibidos, o elemento de matriz em (19), tomando as expansões em (10) e (11), possuem uma dependência extra nos momentos do elétron e neutrino. Por exemplo, o primeiro termo proibido possui a dependência



Pode-se também utilizar o gráfico de Kurie para investigar a possibilidade não nula para a massa do neutrino. Nesse caso, a energia cinética máxima das partículas β não seria mais o valor-Q considerado, pois essa foi calculada supondo a massa do neutrino nula. Nesse caso, a parte final do gráfico de Kurie seria deslocada e esse deslocamento seria uma medida da massa do neutrino. Contudo, essa é uma medida muito difícil de ser feita por conta da elevada precisão requerida. Voltaremos a esse assunto na próxima aula.
A meia-vida comparativa, ou fτ
A constante de decaimento



O interessante de (36) é que o valor


Uma situação interessante ocorre para transições











Apesar da teoria de Fermi explicar bem as propriedades observadas no decaimento β tais como constantes de decaimento e formas espectrais, ela não explica vários detalhes sutis do decaimento β, como violação de paridade. Teorias mais modernas, que incluem troca de partículas, como os bósons


Exercícios
- Obtenha uma expressão para o espectro de energia de elétrons considerando a massa do neutrino diferente de zero. Faça o gráfico desse espectro para massas do neutrino de 1, 10 e 100 eV/c2. Compare os resultados.
- Mostre que, no decaimento β+ do 14O (0+) para o 14N (0+) temos que
.
- Supondo que a massa do elétron seja pequena se comparada à energia do decaimento β, ache uma forma simplificada para o espectro de energia dos elétrons emitidos. Mostre que, nesse caso, o valor médio de energia é Q/2.
- Neutrons decaem em prótons com vida-média de 889 segundos. Conhecendo a diferença de massas entre pótons e neutrons e usando o valor de
obtido anteriormente, obtenha
para essa transição.
- A captura eletrônica pode ser calculada de forma similar ao realizado para o decaimento β. Mostre que a constante de decaimento para a captura eletrônica, em relação à obtida para o decaimento β+ pode ser dada por:
DICA: A função de onda inicial do sistema para a captura eletrônica inclui um elétron e um núcleo, enquanto a função de onda final, apenas o núcleo residual e neutrino. No caso da função de onda inicial, suponha que o elétron esteja na camada K do núcleo (lembre-se da energia de ligação desse elétron) e tome o seu limite para valores muito pequenos de raio, pois o elétron deve estar no interior do núcleo para ocorrer a captura eletrônica.
Leitura recomendada
- Paper de E. Fermi sobre decaimento β (tradução do artigo original em alemão), Versuch einer Theorie der β-Strahlen, E. Fermi, Zeitschrift für Physik A, 88 (1934) 161-177. Tradução: Fermi's Theory of Beta Decay, F. L. Wilson, American Journal of Physics, 36 (1968) 1150-1160.
- Discussão sobre função de Fermi, P Venkataramaiah, K Gopala, A Basavaraju, S S Suryanarayana and H Sanjeeviah, J. Phys. G: Nucl. Phys. 11 (1985) 359-364
- Introdução à Física Nuclear, H. Schechter e C. A. Bertulani, capítulo 7.
- Introductory Nuclear Physics, K. S. Krane, capítulo 9.
- Introduction to Nuclear and Particle Physics, A. Das e T. Ferbel, capítulo IV.
Oi Suaide,
No exercício 2, o elemento de Matriz do decaimento 140 -> 14N só será diferente de zero se o próton e o neutron da última camada do nitrogenio estiverem na configuração tripleto de isospin. Como saber que de fato é essa a configuração deles? Porque, por exemplo, no deuteron eles se encontram no estado singleto de isospin…