Núcleos complexos - o modelo de Fermi

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Notas de aula são propriedade intelectual. Sendo assim, qualquer uso, no todo ou em parte, deve ter a origem referenciada apropriadamente, após autorização de seu autor.

O texto a seguir corresponde à anotações parciais de aula. Não é um texto em forma final, completo e totalmente revisado. Nesse caso, esse texto não tem como objetivo substituir livros sobre o assunto. Assim, esse texto deve ser entendido apenas como um guia de estudo para o aluno acompanhar a disciplina.


O modelo mais simples para descrever um núcleo complexo é o modelo de gás de Fermi. Nesse modelo supõe-se que nucleons (férmions) possam se movimentar livremente em uma região confinada do espaço, que define o núcleo. Os níveis de energia ocupados por essas partículas são definidos pelo confinamento dessas partículas nessa região e o número de partículas que podem ocupar cada nível é dado pelo princípio de exclusão de Pauli. A contagem do número de partículas que preenchem cada nível de energia permite extrair algumas características macroscópicas do núcleo.

O modelo de gás de Fermi pode ser construído a partir de um modelo simples de partículas "livres", não interagentes, confinadas em uma caixa cúbica de volume L^3. No interior da caixa, devemos resolver a Equação de Schrödinger para cada partícula, individualmente e na ausência de potencial, ou seja:

-\frac{\hbar^2}{2m} \nabla^2 \psi = E\psi             (1)

Em uma caixa cúbica, podemos escrever a função de onda dessa como o produto de funções de onda nos eixos x, y e z, ou seja:

\psi(x,y,z) = \psi_x(x)\psi_y(y)\psi_z(z)             (2)

onde (expressões análogas para as outras coordenadas):

\psi_x(x)=A\sin(k_xx)+B\cos(k_xx)             (3)

Tomando um vértice da caixa na origem do sistema de coordenadas e sabendo que a partícula está confinada, temos que B=0. Para satisfazer a condição de confinamento precisamos também anular a função de onda em x=L. Assim, temos que:

\psi_x(x)=A\sin(k_xx) com k_x =  \frac{n_x\pi}{L}             (4)

sendo n_x um número inteiro. De (1) podemos relacionar o módulo de k com a energia da partícula através de:

E = \frac{\hbar^2}{2m}k^2 = \frac{\hbar^2}{2m}\frac{\pi^2}{L^2}\left(n_x^2+n_y^2+n_z^2\right)             (5)

Note que, em (5), há uma degenerescência na energia, pois é possível fazer várias combinações de números de onda que resultam na mesma energia. Contudo, para um estado bem definido, \vec{k}=(k_x,k_y,k_z) só podemos encontrar 4 partículas, dois prótons, com projeções de spin diferentes, e dois nêutrons, também com projeções de spin diferentes.

Para um núcleo com Z prótons e N=A-Z nêutrons, devemos ser capazes de estabelecer quais níveis de energia são populados pelos nucleons. Para isso, precisamos calcular a densidade de níveis de energia presentes no gás, ou seja, calcular quantos estados quânticos temos disponíveis para um determinado estado de energia. A figura 1 mostra os estados possíveis de serem populados no plano k_x,k_y. O número de estados em um intervalo entre k e k+dk consiste no volume dessa casca esférica dividido pelo volume no espaço de fase ocupado por um único estado. Pode-se ver que cada estado ocupa um volume dado por (\pi/L)^3 (no desenho da figura 1, usa-se outra variável para designar a largura da caixa e temo que a=L). Assim, o número de estados no intervalo entre k e k+dk pode ser dado por:

dn(k) = 4\left(\frac{1}{8} \frac{4\pi k^2 dk}{(\pi/L)^3}\right)             (6)

O fator 4 em (6) surge do fato que podemos dispor de 4 nucleons por nível de energia (2 prótons de spin 1/2 e dois nêutrons de spin 1/2). Devemos também considerar apenas a região da esfera onde as componentes de k sejam todas positivas, que corresponde a 1/8 do volume total.
Figura 1 - Distribuição de níveis de energia em um gás de Fermi. Nessa figura, toma-se a=L.

A partir de (5) podemos escrever que:

k^2dk = \sqrt{2} \frac{m^{3/2}}{\hbar^3} E^{1/2}dE             (7)

Substituindo em (6), resulta que:

dn(E) = \sqrt{2}\frac{2}{\pi^2}\frac{m^{3/2}}{\hbar^3}L^3E^{1/2}dE             (8)

Figura 2 - Distribuição de Fermi para T = 0.

O número de estados ocupados nesse modelo é definido pelo número de nucleons presentes no núcleo (A). O último estado de energia ocupado nesse modelo, supondo que todos os estados menos energéticos estejam preenchidos, é denominado energia de Fermi (figura 2) (E_F) e pode ser obtido integrando-se (8), de tal forma que:

A = \int_{0}^{E_F}{dn} = \sqrt{2}\frac{2}{\pi^2}\frac{m^{3/2}}{\hbar^3}L^3\int_{0}^{E_F}{E^{1/2}dE}             (9)

O que resulta em:

E_F = \frac{\hbar^2}{2m} \left( \frac{3}{2}\pi^2\frac{A}{L^3}\right)^{2/3}             (10)

A expressão (10) representa qual seria a energia de Fermi de um núcleo com A nucleons. Não nos preocupamos se eles são prótons ou nêutrons. Contudo, sabemos que o número de prótons e nêutrons não são iguais em núcleos mais pesados. Isso significa que devemos achar separadamente as energias de Fermi para prótons e nêutrons. Isso pode ser feito da mesma forma. Contudo, devemos modificar o fator 4 em (6) para 2, pois estamos separando os estados de energia para prótons e nêutrons. Dessa forma, podemos calcular as energias de Fermi para prótons e nêutrons como sendo:

E_F^p = \frac{\hbar^2}{2m} \left( 3\pi^2\frac{Z}{L^3}\right)^{2/3}             (11)


E_F^n = \frac{\hbar^2}{2m} \left( 3\pi^2\frac{N}{L^3}\right)^{2/3}             (12)

As expressões (10), (11) e (12) possuem o inconveniente de manter o tamanho da caixa como parâmetro do modelo. Isso é um incômodo, ainda mais pelo fato de assumirmos uma caixa quadrada. Sem perder generalização pode-se chegar a expressões similares a essas, independente do formato da caixa, partindo de densidades volumétricas de partículas, ou seja, densidade de massa, \rho_A = A/L^3, de prótons, \rho_p = Z/L^3, ou densidade de nêutrons, \rho_n = N/L^3. Assim, (10), (11) e (12) podem ser reescritas como:

E_F = \frac{\hbar^2}{2m} \left( \frac{3}{2}\pi^2\rho_A\right)^{2/3}             (13)


E_F^p = \frac{\hbar^2}{2m} \left( 3\pi^2\rho_p\right)^{2/3}             (14)


E_F^n = \frac{\hbar^2}{2m} \left( 3\pi^2\rho_n\right)^{2/3}             (15)

Podemos fazer uma estimativa simples da energia de Fermi para núcleos. Supondo a densidade típica de um núcleo como sendo:

\rho_A = \frac{A}{V}=\frac{A}{\frac{4}{3}\pi r^3} = \frac{1}{\frac{4}{3}\pi r_0^3} \sim 0.16 nucleons/fm3             (16)

Resulta em uma energia de Fermi para o núcleo de aproximadamente 37 MeV.

O modelo de Fermi pode ser utilizado para compreender melhor a orígem de alguns aspectos da estabilidade nuclear. A situação mais realista sugere, contudo, que o poço de potencial seja finito. Isso altera levemente o posicionamento dos níveis de energia. Contudo, as características globais do modelo não são alteradas. A partir da energia de Fermi e sabendo que a energia de ligação típica de um núcleon como sendo de aproximadamente 8 MeV, podemos dizer que a profundidade típica do poço de potencial que descreve o núcleo deva ser da ordem de 45 MeV (ver figura 3). Na figura 3-a temos uma representação qualitativa do potencial de interação forte entre os nucleons. Se não houvesse outra interação, o preenchimento de todos os estados até a energia de Fermi resultaria em um número igual de prótons e nêutrons. Trocando um próton por um nêutron, deixaríamos um buraco em um nível de energia abaixo da energia de Fermi e colocaríamos um nucleon em um nível acima da energia de Fermi. Esse nucleon acima do nível de Fermi teria energia de ligação menor que no sistema totalmente preenchido tornando, portanto, o núcleo mais instável. Essa situação sugeriria que o sistema nuclear mais estável seria composto por um número igual de prótons e nêutrons.
Figura 3 - Distribuição de prótons e nêutrons em níveis de energia de um gás de Fermi.


Contudo, não podemos desprezar o fato de existir interação coulombiana entre os prótons no nucleon. Assim, apenas para os prótons, devemos somar a esse poço de potencial, o potencial coulombiano. Isso faz com que o potencial de interação para prótons seja menos profundo que o potencial de interação para nêutrons, como mostrado na figura 3-b. O preenchimento de nucleons até o nível de Fermi, nesse caso, resulta em um número menor de prótons relativo ao número de nêutrons. Como o potencial coulombiano é de longo alcance, dependendo da carga total do núcleo, quanto maior o número atômico, mais raso se torna o poço de potencial para prótons, tornando o número de protons cada vez menor em relação ao número de nêutrons em um núcleo. Isso está em concordância com as observações que núcleos estáveis tendem a ter menos prótons que nêutrons.

Outra característica interessante que podemos construir a partir do modelo de Fermi diz respeito à estabilidade por decaimento beta. Suponha um núcleo fora da linha de estabilidade, por exemplo, com excesso de nêutrons. Nesse caso, teríamos um excesso de nêutrons acima do nível de Fermi e a diferença de energia entre o nível ocupado pelo nêutron e o último nível ocupado pelo próton pode ser tal que o decaimento beta seja permitido energéticamente. A figura 4 mostra um esquema de como os preenchimentos de níveis de Fermi para um sistema de A = 7 impossibilita núcleos com excesso de prótons ou nêutrons e como o decaimento beta resulta em núcleos estáveis com Z aproximadamente igual a N.

Figura 3 - Estabilidade beta para um núcleo com A = 7 segundo o modelo de Fermi.


Pode-se explicar também, utilizando o modelo de Fermi, porque praticamente não existem núcleos ímpar-ímpar estáveis. A diferença entre o poço de potencial para prótons e nêutrons e o fato de haver um próton e um nêutron desemparelhados, cada qual em seu nível de energia, criam condições para que a diferença entre esses níveis de energia que contém esses nucleons desemparelhados permita o decaimento beta desse núcleo para um estado par-par.

O fato de o modelo de Fermi ser capaz de explicar qualitativamente a estabilidade do decaimento beta e o equilíbrio entre prótons e nêutrons no núcleo sugere o questionamento se esse modelo poderia explicar o termo de assimetria entre prótons e nêutrons na fórmula semi-empírica de massa, que discutimos no começo do curso. A partir das equações (10), (11) e (12), podemos escrever a energia de Fermi para prótons e nêutrons como sendo:

E_F^p = C \left( \frac{Z}{A}\right)^{2/3}             (17)


E_F^n = C \left( \frac{N}{A}\right)^{2/3}             (18)

A energia total presente no gás corresponde à soma das energias de cada nucleon. Podemos calcular a energia acumulada separadamente por prótons e nêutrons (exercício), como sendo:

E_T = \int_{0}^{E_F}{Edn}             (19)

Que resulta, para prótons e nêutrons:

E_T^p = \frac{3}{5}ZE_F^p             (20)

E_T^n = \frac{3}{5}NE_F^n             (21)

Assim, a energia total contida no gás de Fermi corresponde à soma de (20) e (21). Substituindo também (17) e (18), resulta em:

E(Z,A) = C^\prime \left( Z^{5/3} + N^{5/3} \right) A^{-2/3}             (22)

Devemos impor que A=Z+N. Assim, o menor valor de energia em (22) ocorre quando o número de prótons é igual ao número de nêutrons. Assim, podemos escrever que a diferença de energia entre (22) e esse mínimo vale:

\Delta E(Z,A) = C^\prime \left( Z^{5/3} + N^{5/3} -2 (A/2)^{5/3} \right) A^{-2/3}             (23)

Definindo D = (N-Z)/2 como sendo a assimetria entre o número de prótons e nêutrons no núcleo, podemos reescrever (23) em termos dessa grandeza. Assumindo que esse número seja pequeno, podemos fazer uma expansão em Taylor em \Delta E(Z,A) (exercício) resultando em:

\Delta E(Z,A) = C^{\prime \prime} \frac{(Z-A/2)^2}{A} + ...             (24)

que corresponde ao termo de assimetria da fórmula de massa.

Apesar da extrema simplicidade desse modelo, capaz de descrever algumas propriedades macroscópicas do núcleo, o modelo de Fermi não é capaz de explicar muitas outras características nucleares, como a distribuição dos níveis de energia do núcleo, momentos angulares dos nucleons, momentos eletromagnéticos, etc. Contudo, essa simplicidade serve de motivação para criar modelos efetivos mais complexos para o núcleo, nos quais essas outras propriedades tornam-se mais evidentes. É o que exploraremos a seguir, através do modelo de camadas nuclear.

Exercícios

  1. Mostre (20) ou (21).
  2. Encontre C^\prime em (22).
  3. Mostre (24). Encontre C^{\prime \prime} e compare seu valor numérico com o termo de assimetria da fórmula de massa.

Leitura recomendada

  1. Fundamentals of Nuclear Physics, N. A. Jelley, capítulo 2.2.3.
  2. Introdução à Física Nuclear, H. Schechter e C. A. Bertulani, capítulo 4.3.
  3. Introduction to Nuclear and Particle Physics, A. Das e T. Ferbel, capítulo III.
Alexandre Tuesday 16 March 2010 at 9:36 pm | | FisicaNuclear

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